quinta-feira, 8 de agosto de 2019

O-Diálogo-dos-Silêncios



Está ali,
Na ave prostrada, morta no chão,
No homem que bateu a porta e não mais voltou,
Em cada gota do mais denso nevoeiro,
Na folha seca no meio da floresta,
Na gazela atravessada na boca do leão.

Está ali,
Na mão que afaga a cabeça da criança,
Nas pernas encaixadas no beijo do amante,
Nas mãos dadas do casal de namorados,
Nos olhares que se penetram em cada cumplicidade,
No movimento ritmado das mãos do mudo,
Na palavra que se gritou e ninguém escutou.

Está ali,
O-Diálogo-dos-Silêncios,
A queixa,
A desculpa,
A razão.

Está ali,
Quando os olhos se penetram
E enxergam,
Na viagem que nem todos sabem fazer,
Tão difícil perceber,
Na química não contrariada,
Na flor que um dia de sol ofereci,
Nas sombras ondulantes de cada pinhal,
No momento não contrariado…
E vivido!

(António Amaral)



# 2241

segunda-feira, 15 de julho de 2019

O martírio de quem escreve





Há mais de dois anos que deixei de ser um cliente assíduo do Facebook, por falta de tempo, muito trabalho e pouca gente para o fazer, mas muito especialmente por falta de paciência para ler comentários descabidos sobre todo o tipo de assuntos, noticias falsas, insultos, discussões com argumentação completamente enviesada, erros e mais erros, frases construídas a martelo. Poderia estar aqui a encher páginas descrevendo todo o lixo que se encontra nesta rede social.


Nessa altura, era administrador de vários grupos literários, fazendo a sua gestão e moderação diária e via mais de metade do meu tempo gastar-se a avisar utilizadores que não cumpriam os regulamentos dos grupos e a banir os reincidentes.


Comecei também a notar que uma grande parte das publicações de textos e de poemas, não eram mais que ligações a outras páginas ou grupos do mesmo tipo, que redireccionavam qualquer clique para fora dos grupos que estava a gerir.


Como esta utilização não me pareceu correcta, fiz alterações aos regulamentos de todos os grupos, inserindo uma cláusula que proibia este tipo de publicação enganosa, que apenas se destinava a aumentar o número de acessos e de cliques nas suas próprias páginas e grupos.


Comecei a observar as pessoas que o faziam e cheguei à conclusão que vários deles, chegavam a publicar o mesmo texto ou poema em mais de setenta páginas, todas com a mesma intenção. Angariar visitantes para a sua página. A partir desse momento, deixei de ter contemplações. Rua, rua, rua, expulso, expulsa, fosse lá quem fosse.


Como sou informático e investigo tudo o que me cheira a esturro, comecei a visitar assiduamente, as páginas do pessoal que publicava textos nos meus grupos, e a analisar o tipo de aceitação que tinham nas suas próprias páginas.


Ao fim de alguns meses, cheguei a uma conclusão que me deixou boquiaberto. Foi essa conclusão que inspirou o título deste escrito – “O martírio de quem escreve”.


Vou passar a citar os comentários que uma grande maioria de amigos, seguidores e membros dos grupos de prosa e de poesia, utilizam para manifestar o seu agrado e apreço, aos textos e poemas publicados por escritores e poetas, frequentadores do FACEBOOK.


“Bom dia”, “Boa tarde”, “Boa noite”, “Tenha uma boa semana”, “Beijinhos”, “Parabéns”, “Lindo”, “Lindo. Bom dia”. Este tipo de comentários dirigem-se indiscriminadamente a homens e mulheres e mostram bem que nenhum deles leu o que o “desgraçado” escreveu pois não há nenhuma referência ao conteúdo.


Mas se nos debruçarmos com mais atenção e analisarmos os comentários dirigidos a mulheres que escrevem, verificamos que elas sofrem muito mais que eles (as que se importam, porque há também muitas que não se importam).


Aqui ficam os mais comuns:


“Bom dia” mais um “LIKE”, “Bom dia” mais um “Coraçãozinho Vermelho”, “Bom dia” mais um “Smile a mandar um beijo”, o mesmo para o “Boa tarde” e para o “Boa noite”, o mesmo para “Tenha uma boa semana”, muitos “Corações vermelhos”, muitas “Piscadelas de olho”, e depois os comentários das “Amigas Cabras”, “HOJE estás linda” (ontem não estava), “Como é que está o teu marido”, e o chorrilho continua, mais uma vez a demonstrar o interesse dos comentadores no conteúdo do que foi escrito.


E se para mal da própria, escritora ou poetisa, é gira ou gira e bem-feita, a todos os comentários mencionados anteriormente e que se tornam neste caso muito mais frequentes, vem os outros dos marmanjões do engate: “O poema liga muito bem com a foto da autora - LINDA!”, “mp” (leia-se mensagem privada), “Gostava de falar consigo Envio mensagem com número de telemóvel”; “Adorava conhecê-la pessoalmente. Escreve muito bem”, etc., etc., etc..


Nesta altura eu digo cá para mim: “Esta malta queima as pestanas a escrever para quê?”.

E eu? Estive aqui a escrever esta merda, para quê?


Ah, já sei… para ler o primeiro comentário que vai ser “Bom dia”.


(António Amaral)